02 agosto 2018

Sobre recordações e escapes



Por alguma razão me pus nesta manhã a rememorar passagens vividas em Ipuã e São Joaquim da Barra, há 35 anos. Comecei na verdade a imaginar a vida de meus pais na longínqua Cambé dos anos 1950, a precariedade que seria aquele lugar, com instalações urbanas mínimas encravadas em derrame basáltico, a conhecida terra rocha, que na seca expele uma poeira penetrante e nas chuvas transforma as ruas em um leito viscoso e quase intransitável. Lembro da descrição de uma tia e sua ginástica para sair de casa com sapatos distintos, para enfrentar essa lama grudenta. Eu tenho alguma recordação dessas condições, nos anos 1960, em que ficávamos reféns do mau tempo, isolados na casa de madeira de meus avós, uma casa pequena que chegava a acomodar duas dezenas de pessoas. No inverno, havia o frio inclemente, que nos recolhia ainda mais entre a sala e a cozinha. 

Aos poucos a casa se expandiu, ganhou novos espaços e mobiliário, tornando-se mais aconchegante. Mas de fato Cambé nos anos 1950 tinha muitas similitudes com Ipuã dos anos 1980, dentre o principal, o desconsolo. Vivi um ano e meio exatos no lugar, sem ter criado nenhum vínculo. Foram poucos os finais de semana que ali passei, e nesse sentido não se compara com meus pais na Cambé dos anos 1950, pois eu podia fugir com meu carro, acumulava dinheiro para isso. Meus pais eram muito pobres, não havia fuga de um lugar restrito, salvo os finais de semana nos bailes do clube, animados pela banda do Gorni, dos quais meu pai já nada se recorda. Por não haver possibilidades de fuga encontraram o equilíbrio entre os parcos momentos felizes e a infinitude das circunstâncias difíceis. Só não houve fome, e quando a perfídia mostrava sua face, aqui, ali, nas relações inescapáveis, engolia-se a seco e prosseguia a vida. 

Não havia escapatória, para o bem e para o mal, para o amor e para o ódio. Na Cambé dos anos 1950 reproduziam-se os atos e os fatos, e as consequências com seus poucos subterfúgios apenas reafirmavam as evidências. Não havia escape de dentro para fora e de fora para dentro, ou pelo menos não se alimentava ilusões por isso. Quase como uma condenação em vida, era um sistema fechado, em que as reações se davam localmente, com poucas trocas com o mundo exterior. Viver, pecar, sonhar, morrer, tudo se dava de modo simples e objetivo ao redor daquele promontório cortado por dez ou doze ruas na vertical e na horizontal, e todos irmanados pela exuberante matriz, que acolhia nos finais de semana suas ovelhas obedientes.

Como relatei neste blog, retornei a Ipuã vinte e tantos anos depois de minha estada por lá, já nos anos 2000 e constatei as profundas mudanças. A principal, desencadeada pelas comunicações. O que fora um sistema parcialmente fechado, tornara-se aberto. As fugas, conduzidas unicamente pela movimentação física, agora permitia fugas digitais, ampliando as possibilidades. Com um mínimo de investimento do poder público nas opções de lazer, como o surgimento de um grande lago artificial, a cidadezinha se transformou. Tanto como a Cambé dos dias atuais, Ipuã expulsou para o passado o barro, a poeira e o desconsolo. Eu não fui reconhecido em meu retorno, a não ser pelo velho barbeiro, que continuava sentado na mesma cadeirinha de vime, do lado de fora, apreciando o tempo escoar.

Tanto como meu pai em Cambé, minha presença em Ipuã se deu pelo banco. Quando não trabalhava, jogava bola, lia Beauvoir e lamentava meu exílio. Hoje penso que fiz o certo, se na época tivesse permanecido em São Paulo, a deriva me propiciaria um tanto mais de acessos de entretenimento. Mas não teria percebido a urgência das coisas, não teria a memória de um passado estranho e desconexo, que casualmente ressurge. Meu tempo ofereceu opções e escapei imune da experiência. Meus pais não tiveram opções além da que escolheram, sair juntos e viver uma nova vida, em outro lugar. Descobriram novas formas de dor, mas também de felicidade.


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