Por alguma razão me pus
nesta manhã a rememorar passagens vividas em Ipuã e São Joaquim da Barra, há 35
anos. Comecei na verdade a imaginar a vida de meus pais na longínqua Cambé dos
anos 1950, a precariedade que seria aquele lugar, com instalações urbanas
mínimas encravadas em derrame basáltico, a conhecida terra rocha, que na seca expele
uma poeira penetrante e nas chuvas transforma as ruas em um leito viscoso e
quase intransitável. Lembro da descrição de uma tia e sua ginástica para sair
de casa com sapatos distintos, para enfrentar essa lama grudenta. Eu tenho
alguma recordação dessas condições, nos anos 1960, em que ficávamos reféns do
mau tempo, isolados na casa de madeira de meus avós, uma casa pequena que chegava
a acomodar duas dezenas de pessoas. No inverno, havia o frio inclemente, que
nos recolhia ainda mais entre a sala e a cozinha.
Aos poucos a casa se expandiu,
ganhou novos espaços e mobiliário, tornando-se mais aconchegante. Mas de fato
Cambé nos anos 1950 tinha muitas similitudes com Ipuã dos anos 1980, dentre o
principal, o desconsolo. Vivi um ano e meio exatos no lugar, sem ter criado
nenhum vínculo. Foram poucos os finais de semana que ali passei, e nesse
sentido não se compara com meus pais na Cambé dos anos 1950, pois eu podia
fugir com meu carro, acumulava dinheiro para isso. Meus pais eram muito pobres,
não havia fuga de um lugar restrito, salvo os finais de semana nos bailes do
clube, animados pela banda do Gorni, dos quais meu pai já nada se recorda. Por
não haver possibilidades de fuga encontraram o equilíbrio entre os parcos
momentos felizes e a infinitude das circunstâncias difíceis. Só não
houve fome, e quando a perfídia mostrava sua face, aqui, ali, nas relações
inescapáveis, engolia-se a seco e prosseguia a vida.
Não havia escapatória,
para o bem e para o mal, para o amor e para o ódio. Na Cambé dos anos 1950 reproduziam-se
os atos e os fatos, e as consequências com seus poucos subterfúgios apenas
reafirmavam as evidências. Não havia escape de dentro para fora e de fora para
dentro, ou pelo menos não se alimentava ilusões por isso. Quase como uma
condenação em vida, era um sistema fechado, em que as reações se davam
localmente, com poucas trocas com o mundo exterior. Viver, pecar, sonhar,
morrer, tudo se dava de modo simples e objetivo ao redor daquele promontório
cortado por dez ou doze ruas na vertical e na horizontal, e todos irmanados
pela exuberante matriz, que acolhia nos finais de semana suas ovelhas
obedientes.
Como relatei neste blog,
retornei a Ipuã vinte e tantos anos depois de minha estada por lá, já nos anos
2000 e constatei as profundas mudanças. A principal, desencadeada pelas
comunicações. O que fora um sistema parcialmente fechado, tornara-se aberto. As
fugas, conduzidas unicamente pela movimentação física, agora permitia fugas digitais,
ampliando as possibilidades. Com um mínimo de investimento do poder público nas
opções de lazer, como o surgimento de um grande lago artificial, a cidadezinha
se transformou. Tanto como a Cambé dos dias atuais, Ipuã expulsou para o passado o barro, a poeira e o desconsolo. Eu não fui reconhecido em meu retorno, a não ser pelo velho
barbeiro, que continuava sentado na mesma cadeirinha de vime, do lado de fora,
apreciando o tempo escoar.
Tanto como meu pai em
Cambé, minha presença em Ipuã se deu pelo banco. Quando não trabalhava, jogava
bola, lia Beauvoir e lamentava meu exílio. Hoje penso que fiz o certo, se na época tivesse permanecido em São
Paulo, a deriva me propiciaria um tanto mais de acessos de entretenimento. Mas não
teria percebido a urgência das coisas, não teria a memória de um passado
estranho e desconexo, que casualmente ressurge. Meu tempo ofereceu opções e
escapei imune da experiência. Meus pais não tiveram opções além da que
escolheram, sair juntos e viver uma nova vida, em outro lugar. Descobriram
novas formas de dor, mas também de felicidade.
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