23 agosto 2018

Sobre os agentes do pensamento bancário

As tetas do neoliberalismo e seus filhotes famintos


Pela qualidade técnica e moral desse grupamento de insanos que tomou o poder, não se esperava outra coisa, destruição dos direitos civis, restrição dos direitos trabalhistas, eliminação de postos de trabalho, deterioração do tecido social, violência urbana, insegurança pautada em incertezas jurídicas, aprofundamento da desigualdade social, dentre outros pontos. Tudo para favorecer um punhado de interesses alocados no sistema financeiro. É de tal monta a concentração do poder dessa gente com representação nos diversos espaços institucionais do país, que a ordem constitucional foi fortemente abalada, espezinhada, desconstruída em seus artigos consagrados, sem que até agora a sociedade civil conseguisse se organizar vivamente para rechaçar tamanha vilania.

Esses representantes da ordem golpista, instalados nos altos escalões do poder judiciário, do ministério público, na mídia corporativa, no poder executivo e legislativo, no empresariado rural e industrial, no sistema financeiro, consagraram novas interpretações das leis, desconstruíram o sentido ético na compreensão política, reduziram a percepção do bem-estar social a uma mera contabilidade de ganhos do capital, instaurando verdades distorcidas (fake) que promovem privilégios e segregação social definidas pelo poder econômico. Em outras palavras, ocorreu e ocorre uma desembestada reorganização na sociedade, em que prevalece a força dos negócios, ainda que em sua profundidade ignóbil em relação à compreensão do processo histórico e social da sociedade, com tanto que tais negócios produzam lucros e mais privilégios.

Em breve, com a continuidade dessa ordem golpista tresloucada, privilégio será ter um posto de trabalho, ainda que com renda irrisória, um lugar onde morar, mesmo que nos confins urbanos, e acesso à portabilidade digital para se entreter com programação descartável. É certo que esses representantes da ordem golpista imaginavam, em suas vãs atitudes, compor um quadro irreversível, de rápida e brutal idiotização social, para permanecerem controlando o poder, mas o acordo deveria ter sido mais profundo, menos cínico. A devastação produzida por esses engenheiros do caos não teria como se manter em uma sociedade que preserva uma agenda minimamente democrática, de eleições políticas regulares. Alguns sinais da reversão silenciosa desse estado de coisas dão conta que, a se preservar os direitos eleitorais, muita coisa deve mudar a partir de 7 de outubro. No mínimo, um forte basta a esse descalabro golpista.

Bem, como disse, esse limite de ação deletéria deveria estar no horizonte da percepção dos representantes da ordem golpista. Aparentemente não estava. Eles, como bons articuladores do comportamento bancário e ignóbeis políticos, maravilharam-se com as delícias do poder concentrado sem se dar conta das consequências de seus atos. É bem possível que logo comecem a pagar a conta do despautério, e ela não será pequena.

Seguirei mais adiante nessa análise.
                   

02 agosto 2018

Sobre recordações e escapes



Por alguma razão me pus nesta manhã a rememorar passagens vividas em Ipuã e São Joaquim da Barra, há 35 anos. Comecei na verdade a imaginar a vida de meus pais na longínqua Cambé dos anos 1950, a precariedade que seria aquele lugar, com instalações urbanas mínimas encravadas em derrame basáltico, a conhecida terra rocha, que na seca expele uma poeira penetrante e nas chuvas transforma as ruas em um leito viscoso e quase intransitável. Lembro da descrição de uma tia e sua ginástica para sair de casa com sapatos distintos, para enfrentar essa lama grudenta. Eu tenho alguma recordação dessas condições, nos anos 1960, em que ficávamos reféns do mau tempo, isolados na casa de madeira de meus avós, uma casa pequena que chegava a acomodar duas dezenas de pessoas. No inverno, havia o frio inclemente, que nos recolhia ainda mais entre a sala e a cozinha. 

Aos poucos a casa se expandiu, ganhou novos espaços e mobiliário, tornando-se mais aconchegante. Mas de fato Cambé nos anos 1950 tinha muitas similitudes com Ipuã dos anos 1980, dentre o principal, o desconsolo. Vivi um ano e meio exatos no lugar, sem ter criado nenhum vínculo. Foram poucos os finais de semana que ali passei, e nesse sentido não se compara com meus pais na Cambé dos anos 1950, pois eu podia fugir com meu carro, acumulava dinheiro para isso. Meus pais eram muito pobres, não havia fuga de um lugar restrito, salvo os finais de semana nos bailes do clube, animados pela banda do Gorni, dos quais meu pai já nada se recorda. Por não haver possibilidades de fuga encontraram o equilíbrio entre os parcos momentos felizes e a infinitude das circunstâncias difíceis. Só não houve fome, e quando a perfídia mostrava sua face, aqui, ali, nas relações inescapáveis, engolia-se a seco e prosseguia a vida. 

Não havia escapatória, para o bem e para o mal, para o amor e para o ódio. Na Cambé dos anos 1950 reproduziam-se os atos e os fatos, e as consequências com seus poucos subterfúgios apenas reafirmavam as evidências. Não havia escape de dentro para fora e de fora para dentro, ou pelo menos não se alimentava ilusões por isso. Quase como uma condenação em vida, era um sistema fechado, em que as reações se davam localmente, com poucas trocas com o mundo exterior. Viver, pecar, sonhar, morrer, tudo se dava de modo simples e objetivo ao redor daquele promontório cortado por dez ou doze ruas na vertical e na horizontal, e todos irmanados pela exuberante matriz, que acolhia nos finais de semana suas ovelhas obedientes.

Como relatei neste blog, retornei a Ipuã vinte e tantos anos depois de minha estada por lá, já nos anos 2000 e constatei as profundas mudanças. A principal, desencadeada pelas comunicações. O que fora um sistema parcialmente fechado, tornara-se aberto. As fugas, conduzidas unicamente pela movimentação física, agora permitia fugas digitais, ampliando as possibilidades. Com um mínimo de investimento do poder público nas opções de lazer, como o surgimento de um grande lago artificial, a cidadezinha se transformou. Tanto como a Cambé dos dias atuais, Ipuã expulsou para o passado o barro, a poeira e o desconsolo. Eu não fui reconhecido em meu retorno, a não ser pelo velho barbeiro, que continuava sentado na mesma cadeirinha de vime, do lado de fora, apreciando o tempo escoar.

Tanto como meu pai em Cambé, minha presença em Ipuã se deu pelo banco. Quando não trabalhava, jogava bola, lia Beauvoir e lamentava meu exílio. Hoje penso que fiz o certo, se na época tivesse permanecido em São Paulo, a deriva me propiciaria um tanto mais de acessos de entretenimento. Mas não teria percebido a urgência das coisas, não teria a memória de um passado estranho e desconexo, que casualmente ressurge. Meu tempo ofereceu opções e escapei imune da experiência. Meus pais não tiveram opções além da que escolheram, sair juntos e viver uma nova vida, em outro lugar. Descobriram novas formas de dor, mas também de felicidade.