Ouço lá fora, do outro lado da Augusta, o que me parece uma guitarra espanhola. Os acordes melodiosos, quase hipnóticos, é que me prendem aqui, e por isso escolho escrever. Ao meu lado, dois autores do século de ouro da literatura espanhola, livros que adquiri nestes dias: El Criticón, de Baltasar Gracián, e Antologia Poética, de Francisco Quevedo. Há algumas semanas, adquiri Don Quijote, do mais afamado e referendado Miguel de Cervantes. Ainda me falta Calderón de La Barca, que devo buscar na próxima semana.
Presentes que me concedo, em edições belíssimas, com farta edición (introdução sobre os autores e a obra). Um mais surpreendente que o outro no estilo narrativo, e assim encontrarei, tenho de encontrar, o tempo necessário para deliciar-me nessas páginas de sonhos e reflexão. Esse barroco espanhol, que por certo torna-se o caudal das letras dos escritores hispano-americanos que sobrevêm, mormente os da literatura maravilhosa, Alejo Carpentier, Manuel Scorza, Juan Carlos Onetti, Lezama Lima, Carlos Fuentes e tantos outros.
São as conexões de meu tempo presente, as harpas que ambientam minhas origens, meu passado que se faz futuro. A guitarra silenciou, remeto-me a um trecho de Garcián que já havia observado antes, Mirá, los sábios son pocos, no hay cuatro em uma ciudad, !que digo cuatro!, ni dos em todo um reino. Los ignorantes son los muchos, los necios, son los infinitos; y assí, el que los tuviere a ellos de su parte, esse será señor de um mundo enterro. Está lá, em Crisi Quinta, tão lindo quanto insofismável! E um trecho do famoso Letrilla satírica, de Quevedo, Madre, yo al oro me humillo/ él es mi amante y mi amado/pues, de puro enamorado/de contino ando andarillo/ que pues, doblón o sensillo/hace todo cuanto quiero/ poderoso caballero es don Dinero. (...)
Alegro-me imenso em dispor dessas obras, quero sondá-las, sem uma sequência lógica, apenas submetido ao apreço e à delicadeza das palavras, sem pressa para nada. A guitarra silenciou, sim, e parece de modo definitivo, porém me propiciou algo da inspiração e do esforço para firmar essas serenas impressões de Natal.
Mas a notícia grosseira da semana, medíocre, estapafúrdia, foi o final do semestre no campo da educação. Não pelos alunos ou pelas minhas obrigações, mas pelo que se passou com alguns de meus colegas, demitidos de modo vil, por razões insensatas, que se prendem à necessidade do lucro. E teremos de conviver com esse espetáculo dantesco, proporcionado por meros líderes contábeis, que nada conhecem da alma humana, e talvez pouco da razão financeira.
Vejo-os todos os dias aqui ao redor, circulando pelas ruas, tomando seus cafés,
sempre em pequenos grupos, chefetes ou nem isso metidos em seus rigorosos
ternos escuros, as falas contidas às resoluções de mercado. Não fazem a menor
ideia. Chega de dizer que cumprem ordens, essa compreensão caiu quando os
comandantes de campos de extermínio foram julgados e quando Hanna Arendt expôs
o mais insidioso deles, Adolf Eichman. São os representantes diuturnos do
horror neoliberal, prestativos em suas mesas de compra e venda.