07 junho 2016

Cretinos mistificadores da lei

Vileza, da série Estranhos Poderes


"Auro desliga os microfones, levanta-se e sai em meio a berros de protestos ou palmas e hurras de triunfo. O deputado trabalhista Zaire Nunes Pereira, do Rio Grande do Sul, corre para esbofeteá-lo aos gritos de "cretino mistificador da lei", mas não chega a alcançá-lo. Em ambos os lados, o espanto é geral. Tudo foi tão rápido que até os que aplaudem estão perplexos. Satisfeitos, mas atônitos. Revolta e alegria se alternam por aquela insólita "declaração de vacância" do mais alto cargo do país, em que nada foi debatido ou discutido e tudo se consumou em poucas frases imperativas". 
(trecho do livro 1964 O Golpe, de Flávio Tavares)

A triste cena ganha relevância, para mim, no gesto intempestivo do deputado gaúcho que buscou o presidente da Câmara para esbofeteá-lo. Foi também neste momento o gesto aqui não descrito de outro deputado também trabalhista, Rogê Ferreira, que conseguiu disparar duas "cusparadas cívicas" em Auro. No mais, o registro frio da história, com seus trágicos contornos. 

O certo foi que, na mesma fatídica noite da deposição de João Goulart, ocorreu outro fato digno em sua pequena dimensão, conforme relato de Flávio Tavares.

"São 3h25 e agora será a posse. Alguém, no entanto, lembra um detalhe fundamental: falta um general. Sem um general que avalize a posse do novo presidente, não pode haver posse nem haverá novo presidente. Alguns senadores e deputados saem em busca de um general e entram no gabinete de Darcy Ribeiro. O general Nicolau Fico está lá, ao lado do chefe da Casa Civil, mas pensa também como Darcy, que, dedo em riste, lhes grita: Isto é um esbulho, uma usurpação. Vocês são uns usurpadores. Retirem-se daqui!"

A História levou cinquenta anos para revelar os acontecimentos do golpe em 1964; hoje ela se inscreve ao tempo em que ocorre, tudo está nas redes sociais, registrado em texto e em imagens por autores anônimos que nos revela o golpe presente e o desdobramento das consequências. 

Assim vemos os jovens ocupando espaços públicos, as mulheres organizadas cantando contra a cultura do estupro, o verdadeiro jornalismo produzindo análises em tempo real, os intelectuais mobilizando-se pela Cultura, nada escapa à vilania, nada a Temer. Já não são capazes, os comparsas do golpe, a sair livres pelas ruas, sem que sejam recepcionados pela população e devidamente chancelados como golpistas.     

Nunca será demasiado buscar um presidente da Câmara para esbofeteá-lo, nem chamar de usurpador o golpista entronizado como presidente. Momentos históricos, muito mais consistentes do que os de abril de 1964 acima descritos, possibilitam uma verdadeira ação política e redimem a democracia do vergonhoso ultraje perpetrado no Congresso. As mobilizações possuem força para permanecer - essa é a expectativa de grande parcela da sociedade civil - até a queda dos usurpadores.


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