Chegamos ao dia da votação na câmara da proposta mais
descabida de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, sem uma ideia
nítida do que irá acontecer. Os meios de comunicação corporativos abandonaram
de vez qualquer fio de discernimento em sua função de mediar os fatos com sobriedade e equanimidade, ao assumirem de modo
progressivo o papel da oposição e produzirem nos últimos meses, dia a dia, semana
a semana, um tom irascível de descaracterização de um governo
democraticamente eleito.
Para isso, se valem de todos os artifícios, desde a divulgação
de áudios vazados, robustecimento das delações premiadas, análises insinuantes
a favor do impeachment, seja por analistas da 'casa', seja por 'especialistas'
convidados, de acordo com a orientação editorial dos patrões. Neste particular,
impressiona o discurso unificado, muito bem articulado nos detalhes da elaboração semiótica e da construção do discurso.
Impressiona a ordem unida em sintonia dos jornais diários, das revistas semanais, dos programas de rádio, dos telejornais de canal aberto e fechado, dos sites hegemônicos. De nada parece adiantar a posição crítica dos meios estrangeiros, que condenam esse posicionamento parcial; a impressão é que os meios corporativos de nosso país estão com 'o corpo fechado', protegidos por uma força poderosa, o deus dinheiro, que os ampara de quaisquer prejuízos na imagem.
O discurso concatenado não deixa dúvidas a respeito de um
grande acordão, assinado por esses barões midiáticos, e que envolve grandes
parcelas do ministério público, do empresariado, dos deputados e senadores,
todos alinhavados em torno de interesses que se cruzam. Se Dilma e Lula são
temas cotidianos de um assalto brutal e indiscriminado à intimidade, numa clara
ruptura dos padrões aceitáveis de jornalismo, indivíduos como Eduardo Cunha e
Michel Temer, condutores do movimento golpista, são poupados da investigação
mais apurada de seus crimes de responsabilidade.
(Aqui no café, escrevo com dificuldades para me
concentrar, não pela sonoridade natural desses espaços públicos, mas pela fala
despudorada de um casal de 'coxinhas', logo à minha frente, que analisam o fim
do governo Dilma. A mulher então comenta, 'O desfecho mais bonito hoje seria,
ao final da tarde, todos acenderem uma vela em agradecimento, aqui na
Paulista'... Imagino o lugar ideal, em frente à Fiesp, sob os auspícios do famigerado Deus Pato!)
Sigo daqui a pouco para o Anhangabaú, onde ocorrerá a
vigília a favor da Democracia, contra o golpe. Na Paulista, uma movimentação
ainda difusa, que mistura pessoas que passeiam a pé ou em bicicletas, no belo
espetáculo de cada domingo, com manifestantes em defesa do que chamo de golpe.
Talvez o segundo grupo ganhe com o passar das horas mais adesões, e dependendo
do que ocorrer em Brasília no final da tarde, se expanda ou feneça.
Em minhas aulas ao longo da semana não pude deixar de
comentar os acontecimentos políticos de nosso país. Na sexta-feira à noite,
praticamente suspendemos o tema da aula pela discussão aberta do processo de
impeachment. Descrevi minha preocupação, como cidadão atuante, pelos caminhos
de nossa Democracia, estabelecendo relações da evolução política de hoje com a
de março de 1964. Foi muito interessante ver o interesse e a clara adesão dos
alunos ao debate, desejosos em saber mais sobre o golpe cívico-midiático-militar do passado e o ritual
golpista de hoje.
Concluo provisoriamente, realçando o patético e, ao meu
ver, irreversível estágio em que os meios corporativos de comunicação
alcançaram. A escalada dos ataques ao governo Dilma e de modo especial à pessoa de Lula se
diluíram no pastiche de mal gosto, e o que é pior, ultrapassaram o limite
razoável de recomposição da credibilidade. Com a permanência do governo Dilma,
o que espero que aconteça, esses órgãos terão de abandonar definitivamente o
papel de mediação equilibrada (e não digo neutra!) dos fatos, para assumir aquele que bem realizam nestes tempos, o de panfletos publicitários de um modelo
ultrapassado de política.