Natália, Trotski e Liova
Faz
algumas semanas que penso em escrever sobre os últimos anos de Lev
Davidovich, Trotski, do ponto de vista de seu mais completo biógrafo, Isaac
Deutscher. Porque ali encontro não só a bela descrição de um consistente
sistema de ideias - do contrário, não teria sido vítima de cruel perseguição
sofrida por longos doze anos - mas também o texto exuberante de um intelectual
marxista polonês que se empenhou em relatar em profundos detalhes o percurso do
líder bolchevique.
Exuberante por vários motivos. O que mais me atrai na construção da pesquisa de Deutscher é a competência como descreve a cronologia dos fatos de uma época, sempre relacionando com sua personagem biografada. Assim, tomando este terceiro volume, O Profeta Banido, é possível acompanhar um painel da situação da oposição política na URSS no final dos anos 1920 com o exílio de Trotski em Alma Ata e mais tarde, com seu banimento para Prinkipo, na Turquia. Os anos trinta aparecem como uma sucessão de desventuras para Trotski, perambulando pela França, Noruega e México, sempre com o pano de fundo político de cada país, desenhados pelos principais atores políticos da época.
A evolução do pensamento e da ação de Trotski são regidos pelas circunstâncias políticas definidas pelo exílio, e paralelamente, pelos acontecimentos no cenário europeu, como a subida dos nazistas ao poder, o front Populaire, os processos de Moscou, os alinhamentos dos partidos comunistas e a capitulação à burocracia stalinista. Os macro acontecimentos regem os movimentos de Trotski, que sem tempo para se definir uma plataforma de ação, sucumbe às pequenas demandas, as disputas internas de seu movimento e as urgentes respostas aos caluniadores. Aqui e ali, a liberdade para uma ação política mais consistente, como os encontros com Rivera e Breton, por exemplo, mas será uma década sem uma grande obra, à altura de Literatura e Revolução, ou A História da Revolução Russa, redigidos quando ainda participava do poder.
Minha primeira leitura de O Profeta Banido ocorreu há exatos 30 anos, quando organizava meus conhecimentos políticos não apenas da revolução russa, mas sobre as tendências de esquerda, de um modo geral. Respirávamos, naquele momento, os ares da redemocratização, e os partidos definiam seus projetos para o embate político, que se estenderia com vigor até as eleições de 1989. Curiosamente neste ano, com a queda do muro de Berlim, ocorre um refluxo das utopias da esquerda, ocasião em que o neoliberalismo, amparado nos ideais dos governos de Reagan e Thatcher, ganha espaço com fuerza abrumadora. Os sonhos e esperanças dos processos de reabertura política nos anos 1980 em nosso continente sofreram um duro golpe, e o retrocesso duraria pelo menos uma década, quando uma onda de governos populares, começando em 1999 com Hugo Chávez e com Lula em 2002, romperiam de vez com o projeto de um mercado comum nas Américas, a famigerada Alca.
De lá para cá, costumo retomar ao acaso a leitura de pequenos trechos da obra de Deutscher, e me situar em um determinado espaço-tempo da vida pessoal de Trotski. Termino por permanecer dias e mesmo semanas com o largo volume, avançando, recuando, buscando outros instantes desta luta imensa e condenada. Premido pela velocidade dos fatos, é um período em que não ocorrem grandes debates políticos que possibilitem um avanço no campo das ideias e das práticas no movimento comunista. Mesmo a organização e realização da 4a. Internacional se dará de modo praticamente clandestino. Trotski só tem tempo de responder, de reagir, e em certo sentido, de dançar conforme a música, o que faz com muita energia. A evolução dessa atividade exige esforços desgastantes, que nem sempre terão a repercussão desejada.
Trotski esteve sempre muito à frente na análise da conjuntura política do que seus seguidores. Foram poucos os fiéis companheiros que puderam compreender e dar continuidade ao conjunto de proposições de seu líder, e nesse sentido fracassaram. Na parte final de sua vida, Trotski esteve à deriva na busca por um exílio satisfatório e por conta disso e da implacável perseguição da GPU, viu-se completamente isolado na articulação da 4a. Internacional, e como comentado acima, no avanço de uma oposição eficiente ao centralismo burocrático. A grande obra, a elaboração de uma biografia de Lênin, e sua principal denúncia, a biografia iniciada sobre Stálin, não se consubstanciaram. Pela dificuldade das circunstâncias, Trotski não conseguiu granjear militantes e simpatizantes em número suficiente para recompor uma plataforma de lutas, e não tardou a ser devorado pela insídia stalinista.
Ao tempo em que a narrativa das tensões políticas avança, Deutscher, por sua formação eclética, nos permite igualmente aproximações frequentes com a literatura. Em certo momento, Trotski se refere aos percalços do dr. Stockmann, personagem de Ibsen, quando se vê acuado por uma autoridade norueguesa. Mais tarde pude ler esta peça e constatar as similaridades entre a ficção e a realidade. Deutscher também relata a coincidência histórica que o próprio Trotski, em dado momento, estabelece com o arcipreste Protopop Avvakuum, personagem do século XVII que terminou condenado à imolação em praça pública. Também a certa altura, surge a referência ao rei Lear, de Sheakespeare. As relações com personagens atormentados ou condenados não descaracteriza o sentido da resistência ideológica que impregna cada personagem e por certo seja este aspecto, de cariz visceral, inexorável, que me aproxima de Trotski. E é o que encanta no magnífico painel construído por Deutscher.