Uma destas situações em que não incorporamos devidamente os sons e os gestos do lugar, passamos por ele sem sentir, sem saborear. Eram pouco mais de onze horas da manhã e embarcava para o Rio, cidade mágica, para uma entrevista no Iuperj, uma bolsa de pós-doc. Levei o mínimo suficiente, minha pasta com um netbook, as provas do dia a serem corrigidas, meu projeto de pesquisa e um pequeno caderno, para eventuais anotações. Um salto alucinado, mal chegaria, já estaria retornando. Tomei as precauções de reservar as passagens para horários amplos, ir pela manhã, voltar à noite, sendo que a banca ocorreria no meio da tarde.
Desembarquei pouco após o meio-dia, tomei o Premium, o ônibus especial que liga o Galeão ao Santos Dumont e lá me fui, com boa margem de tempo, avançando pelo trânsito caótico da avenida Brasil e Presidente Vargas. O dia estava generoso, aberto, mais de trinta graus, mas eu percorria um outro Rio, longe do mar, do azul, da poesia visual... Nem sentia a temperatura local, amenizada pelo ar condicionado do veículo. Avançávamos lentamente, as reformas na região portuária nos seguravam em meio a uma paisagem de veículos, de poeira, ingrata, tão parecida com qualquer grande cidade, um Rio em preto e branco.
Desci próximo à Candelária restando menos de trinta minutos para a entrevista. O prédio do Iuperj é bem ao lado, fiz o trajeto de duzentos metros caminhando lentamente, no meio do caminho, a avenida Rio Branco. Comprei um saquinho de caju e com a pasta a tiracolo, cheguei à esquina histórica. Um trânsito infernal, muitos coletivos com diversos destinos, a ausência de faixa de pedestre, atravessei aos bocados, quando o vermelho conteve o fluxo da antiga avenida Central. Foi meu primeiro momento de satisfação por sentir-me no Rio, ainda que de modo efêmero. Ao cruzar a pista da Rio Branco, pude desvelá-la em perspectiva, imaginando a Cinelândia e mais além, o aterro do Flamengo e o mar.
Antes de subir até o sexto andar do prédio número 7 da Praça Pio X, tive um tempinho para ir até o agradável espaço do Banco do Brasil e tomar um café. Quando cheguei ao sexto andar, ainda aguardei por meia hora até o início da minha entrevista, quatro andares acima, na reitoria. No corredor de espera, encontrei uma doutora que participaria do concurso como eu, mas em Relações Internacionais. Conversamos sem pressa, ela expressando-se segura em seus argumentos, em um tom baixo e suave, relatando-me circunstâncias da política externa do Brasil, em especial voltada para os direitos humanos, tema de seu doutorado. Logo chegou seu marido, um homenzarrão jovem, advogado, de modos e olhares cuidadosos, porém aberto a uma boa conversa. Ela é chamada e ficamos, eu e ele conversando sobre concursos, política, Milton Santos...
Sou convocado a ir ao décimo andar, e lá ainda aguardo alguns minutos antes de me posicionar diante da mesa. O processo durou mais do que as vezes anteriores e foi mais consistente, tanto nas indagações quanto em minhas falas. Falei um bocado das periferias paulistanas, da Cooperifa, dos jovens e suas oficinas culturais, Sérgio Vaz, Ferréz, Alan da Rosa, os saraus, tudo surgiu à baila, num jorro saboroso e terno, e meus argumentos fluíam como minha passagem no Rio, rápida, atenta, carregada de desejos, e só percebi que tocou um ponto sensível em meus examinadores quando falei da Semana de Antropofagia Periférica, Oswald nas margens! Um deles cutucou o outro dizendo, 'viu, antropofagia...', como se eu tivesse falado a palavra mágica.
Despedimo-nos mais uma vez entre sorrisos e sem sair do prédio, procurei um espaço live no andar para a correção das provas, que tinha de lançar no sistema naquele mesmo dia. Recebeu-me uma jovem estudante, que me ofereceu um canto confortável, na sala que me pareceu uma parte da biblioteca do instituto. Avancei bem nas correções e de quando em quando me detinha para olhar através da janela ao meu lado, divisando em cheio a Candelária, por um ângulo inédito, de cima para baixo, tão próxima e tão histórica, com um ar abatido pelas pixações. Intervalos em que também refletia sobre a presença negra no Rio, tão perceptível, tão natural e simpática, em todos os momentos, a presença incorporada como de fato deve ser, coexistindo sem dramas com a parte branca e com os ritmos da cidade. A jovem doutora na antessala, a estudante que me recebeu na biblioteca, os jovens retornando comigo ao Galeão, profissionais bem remunerados, comunicando-se em inglês com turistas, vivendo plenamente a vida social, sem as reservas que identifico regularmente em minha cidade...
Faltavam umas dez provas e decidi iniciar a volta. Caminhei até frente do hotel Guanabara, na Presidente Vargas e aguardei no ponto comum a todos os ônibus, o conhecido Premium, conduções metálicas azuis e nada especiais no conforto, como sugere o nome, a não ser pelo preço majorado, 11 reais. Comprei dois pacotinhos de amendoim na banca em frente e após longa espera, surgiu o coletivo. Embarque para logo em seguida o desembarque: a máquina pifou. Saímos todos, sob o sol escaldante, sob os ruídos incessantes, para muitos papos animados, e depois embarcar em um outro veículo e prosseguir até o aeroporto. No retorno não revi o Corcovado, que na chegada me alimentou o imaginário, confirmando-me como um dos poucos ícones a serem apreciados nesta furtiva visita...
Eram mais de 19h e estava de volta ao Galeão, minha primeira vez ali. Nenhuma simpatia, o lugar está submerso em reformas, o que fez minha espera de duas horas um pequeno martírio sonoro. Retomei as provas que faltavam, o cansaço começou a me reter os movimentos e os pensamentos. Só me restava fragmentos, as imagens da bela mulher da minha vida, a possibilidade de trabalhar no Rio, os desejos de um convívio prazenteiro... Demorou para que, por fim, pudesse me sentar na poltrona do avião e relaxar. Ainda esperaríamos outro tanto, pois um dos passageiros passou mal e se retirou, e com ele suas bagagens já embarcadas.
Foi mais um desses voos discretos, em que mal temos tempo de pensar na vida, meros quarenta minutos, é o que me distancia do Rio e de tantas diferenças culturais! Ainda tive de fazer um derradeiro esforço nesse movimento alucinado e sem pausa, para encontrar um local e lançar as notas, pois não teria tempo de chegar em casa e encontrar o sistema aberto. Na Paulista, ao descer do ônibus, o nosso 'Premium', entrei em um hotel e solicitei permissão para utilizar o wi-fi, bendita solução digital. Foi então que pude utilizar, pela única vez, meu notebook e aos poucos registrar uma a uma as notas dos alunos, em meio a vagos pensamentos.
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