Abaixo, trechos de meu artigo publicado e apresentado nas X Jornadas de Sociologia da UBA (Universidade de Buenos Aires), julho de 2013, sob o título Modernidade e Vida Subjetiva: Simmel visita São Paulo.
I - MODERNIDADE
“No início do século XX, Berlim é uma
cidade em profunda transformação, submetida a um crescimento vertiginoso.
Recebe um fluxo ininterrupto de migrantes proveniente das zonas rurais, e em
trinta anos, de 1870 a
1900 sua população triplica, passando de aproximadamente 900.000 para pouco
mais de 3.000.000 de habitantes. Com a chegada dessa multidão de pessoas que se
instala nos bairros mais periféricos, dilatando os limites da cidade, surgem
novas fábricas, novos edifícios de apartamentos, expandem-se as linhas de bonde
e do metrô, tudo regido por um fluxo renovado de pessoas, mercadorias e
informação, frêmito laborioso que acentua o ruidoso
esplendor das ruas da cidade moderna (...).
“Sob o ritmo veloz da modernidade, os
berlinenses estão mais atentos à leitura dinâmica dos jornais, no tempo livre
dentro dos bondes. Tornam-se leitores ávidos das notícias que informam
diariamente sobre alojamentos, trabalho, serviços etc, colocam-se a par sobre o
pulsar e o crescimento da cidade. Em um período que os romances começam a dar
lugar aos novos meios de informação, Gurk, como outros autores contemporâneos, consideram os jornais e outros meios de
comunicação metropolitanos como poderosos agentes de homogeneização e
empobrecimento espiritual (...)
“Na mesma linha em promover o ritmo
ativo e dinâmico da grande Berlim moderna, está o filme Berlin, Die Sinfonie der Grossstadt (Berlim, a Sinfonia da Grande Cidade, 1927), de Walter Ruttmann. No
início, a cidade amanhecendo calma e esvaziada, para aos poucos mostrar os
detalhes das pessoas despertando para os seus afazeres, o comércio abrindo as
portas, as crianças chegando à escola, os automóveis, os bondes, os metrôs
dando ritmo à narrativa silenciosa, os planos se ampliam, dão ênfase à rua, ao
movimento constante, a grupos de pessoas, depois à multidão deslocando-se ao
trabalho, as máquinas em pleno funcionamento. A vida se restabelece, desponta
calcada na modernidade dos artefatos mecânicos, mas também às pequenas nuances,
a confusão na calçada com o batedor de carteiras, a dama da rua que galanteia o
cavalheiro, através da vitrina, a cena de casamento, a senhora que sobe
lentamente a escadaria da catedral, pontos que arrefecem por instantes a pressa
cotidiana, pequenos detalhes inseridos na sinfonia da grande cidade. A tecnologia
coordenada pela sincronia racional, como diz Georg Simmel, a técnica da vida na grande cidade não é concebível sem que todas as
atividades e relações mútuas tenham sido coordenadas num esquema fixo e
supra-subjetivo (...).
II –
SUBJETIVIDADE
“Para se
compreender a coisificação do mundo e suas distorções regidas pela circulação
monetária, um caminho instigante na sociologia de Simmel é, como dissemos, o
que passa pelo espírito subjetivo das apreensões cotidianas. Em sua obra Imagens Momentâneas, temos um
conjunto de contos, fábulas, sátiras, até mesmo um poema, que foram
anteriormente publicados na revista de vanguarda Jugend, de
Munique, sob os auspícios do movimento Jugendstil
(a Art Nouveau alemã). Encontramos neste pequeno volume, o olhar
corriqueiro, as percepções imediatas da vida diária, tentativas de captar os signos dos tempos modernos. Simmel se entrega
à liberdade em escrever sátiras, contos, fábulas, com o mesmo espírito
linguístico-literário aplicado a Nietzsche, reflexões do sentido sem sentido, um
movimento de reconciliação entre o olhar mais superficial e o espírito
mais profundo das coisas. Com estes textos, Simmel alinha as
primeiras ideias de seu método indutivo, para mais tarde ganhar substância na
construção de sua obra (...)
“No texto Só o dinheiro não traz a felicidade, Simmel nos
descreve uma conversa de salão entre dois indivíduos que avaliam o valor do
dinheiro na sociedade, e faz em seguida a avaliação do problema levantado pelo
diálogo, a possessão (do dinheiro) nos domina no afã de ter sempre mais e
nos enredamos em inúmeros assuntos irremediáveis, que são alheios à salvação da
alma, para proceder à
conclusão em forma de moral, as
coisas espirituais estão mais além da questão de ter ou não ter. O dinheiro
cobiçado tem seu valor apenas se o temos, pois só assim podemos usufruir dos
prazeres que ele pode oferecer. Ao contrário, os prazeres da beleza das
estrelas ou de uma paisagem campestre residem no encanto proporcionado ao
espírito, não precisamos tê-los como posse (...)
“Um dos
exemplos mais representativos da obra, que contrapõe o valor monetário
(dinheiro) ao valor metafísico (alma) se apresenta no texto Leilão. Segundo Simmel, o leilão
anunciado de um cobiçado carneiro, para ajudar na manutenção de uma criança
órfã, o remete a um sonho, onde se leiloava uma alma para corpos desalmados.
Não houve muitos interessados, e ao fim, acabou vendida por um baixo preço a alguém que em realidade não tinha alma, e
que no caso de possuir uma, não lhe acarretaria o mais insignificante gasto.
A criança e a alma colocadas na mesma chave, em oposição ao mesmo sentimento desalmado, e desta maneira, valores como
ganância e sensibilidade do espírito, colocados em oposição um ao outro.
III – SIMMEL VISITA SÃO PAULO
“A cidade
de São Paulo dos anos 1950 em muitos aspectos se assemelha a Berlim dos anos
1900. Cresce e se desenvolve, submetendo-se a uma profunda transformação da
paisagem urbana. Em dez anos, de 1950
a 1960,
a população salta de 2.200.000 para 3.825.000 habitantes.
O grande fluxo migratório, proveniente em sua parcela mais significativa das
áreas menos desenvolvidas do nordeste do Brasil, se estabelece na cidade e em
seu entorno (região metropolitana), para se incorporar como mão de obra de
baixo custo. O que move o desenvolvimento da cidade é a implantação da indústria
automobilística, em meados dos anos 1950, e a construção civil, que se
incrementa nos anos posteriores. A cidade se modifica rapidamente, os casarões
da nobre avenida Paulista são demolidos para o surgimento de edifícios
comerciais e residenciais. O automóvel também não tardará em ocupar o espaço
urbano de modo abundante, tornando-se símbolo da pujança econômica,
incorporando o slogan a cidade que não
pode parar. E não para (...)
“A cidade
industrial reproduz ainda que por um período breve, o mesmo cenário inquieto,
ansioso, profícuo, notívago, de multidões de pedestres que se entrecruzam e se
dispersam. Ao longo da jornada diurna, a São Paulo movida pelos negócios, pelas
máquinas, pela circulação de dinheiro; à noite, o tempo dos boêmios, os bares
cheios, as boates... o chiado dos motores abre espaço para a sonoridade das
canções e das discussões políticas, entrecortadas por tilintares de copos. A
cidade guarda essa dicotomia da modernidade, veloz, ruidosa e dinâmica ao longo
do dia, sonhadora e boêmia, ao cair da noite. Como em Berlim ou Paris, no
século XIX, o flâneur paulistano em sua condição moderna, circula enfurnado na
multidão, como seu refúgio, como um entorpecente (...)
“As
perdas são visíveis em poucos anos, os escritórios se deslocarão mais para
oeste, para a região da avenida Paulista, as multidões de cidadãos
participantes se transformam em multidão de consumidores assustados e se
deslocam para os novos centros sagrados do consumo, os shoppings centers, de
carro. A especulação imobiliária, encorpada com farta mão-de-obra, empurrará
paulatinamente estes operários e a população de renda mais baixa dos seus
sobrados e dos cortiços centrais, para os bairros distantes, justamente na
altura em que os bondes são retirados de circulação (...)
(...)
V –
CONCLUSÃO
“ (...) O olhar atento de filósofo e
sociólogo de Georg Simmel tomará a condição do dinheiro como denominador comum
de todos os valores da metrópole, chamando a atenção para o aprofundamento da
impessoalidade e para a objetividade das relações urbanas, que se expressa em
sua consagrada definição do caráter blasé. A grande cidade, em sua definição,
“é o verdadeiro cenário da cultura objetiva, que cresce para além de tudo o que
é pessoal”. Em outras palavras, a resistência do sujeito
pode não ser suficiente para quebrantar a plenitude do espírito impessoal, e
mesmo o devaneio criativo do flâneur – ou o espírito lúdico do sociólogo –
mostra um delicado contraponto reflexivo para a intensa coisificação da vida citadina, a qual ganha fôlego no capitalismo
mais contemporâneo, de caráter neoliberal”.
(disponível em: http://cdsa.aacademica.org/000-038/521)