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Foto de Greg Girard |
Esse
o Brasil, uma conjunção de formações díspares que não se alinham e no mais das
vezes, se contradizem. Uma sociedade rompida que se constrói pela autofagia,
onde os grupos mais fortes se estabelecem em detrimento dos mais débeis. Assim
sempre foi e segue sendo, ainda que vez ou outra governos mais populares
estabeleçam algum nível de desenvolvimento social. Leio Verdade Tropical, de
Caetano Veloso com gosto, com uma defasagem de trinta anos desde sua escritura.
Sua narrativa descreve o tempo todo o que se faz e o que se destrói em uma
sociedade autoritária. O episódio de sua prisão, junto com Gilberto Gil, é de
uma ignomínia absoluta, só mesmo produzida por um sistema ignorante até a medula,
e que dispõe de poder.
O
processo da detenção dos dois não difere da de Rubens Paiva e de tantos outros
brasileiros. Lembro de Rubens Paiva em razão do filme Ainda Estou Aqui,
de Walter Moreira Salles, ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro ontem.
Uma festa coletiva, que tomou conta das ruas do Brasil, que demonstra a
penetração que o filme teve nas várias parcelas da população. Mais de cinco
milhões de pessoas só no Brasil assistiram no cinema Ainda Estou Aqui,
propiciando uma compreensão muito clara do que significou a violência militar sob
a ditadura, demolindo as falsas convicções de que o período foi de
desenvolvimento e bem-estar.
O
trabalho didático desse filme foi mais efetivo do que todo o processo de
educação formal em 60 anos! Esclareceu, coletivamente, sobre os horrores da
ausência de liberdade e de direitos civis. Talvez o ponto chave do sucesso foi
uma narrativa que expõe a brutalidade de maneira indireta, sem a necessidade de
conduzir o espectador às salas de tortura com a cadeira do dragão e as maquininhas
de choques elétricos. E mais ainda: expor a sorrateira invasão domiciliar de
uma família de classe média, quebrando sua estrutura com o sequestro e
desaparecimento do pai. Tudo manifestamente decidido e conduzido nas entrelinhas
do terror, sem rosto e sem finalidade.
Caetano
e Gil foram sequestrados por terem participado de um show onde os artistas expunham
a faixa famosa de Torquato Neto, Seja marginal, seja herói, sobre a
reprodução de um corpo estirado no solo. A significação desse gesto superava a
compreensão das mentes obtusas dos militares de plantão, que viam aí uma
associação intolerável com propósitos subversivos. É provável que o
tropicalismo e sua rebeldia cultural tenha incomodado as casernas, que na falta
do que fazer, passaram a deter artistas. Os dois meses de prisão de Caetano
produziram um terrível mal-estar depressivo, superado a custo mesmo no exílio
em Londres. Espíritos sensíveis, que acusavam a dor e a violência recebida, sem
uma pronta reação. Assim foi também com frei Tito, que não apenas foi detido,
como duramente torturado, e que acabou se enforcando no exílio francês.
Eunice
Paiva não se dobrou, embora tenha mantido um impressionante sangue frio no método
que seguiu para denunciar a ditadura. Até onde pôde, lutou por saber do destino
do marido, até que quarenta anos mais tarde, a partir dos relatórios da
Comissão Nacional da Verdade, consegue finalmente a declaração de que Rubens Paiva
tinha sido torturado e morto em dois dias, e seu corpo diligentemente
desaparecido. Como ela, muitos não se dobraram ao longo dos anos.