31 março 2025

Cenas marcadas pelo tempo


A bela capa

Saiu a capa final, e com ela o miolo revisado. Trata-se de meu mais recente livro, Cenas que se diluem com o tempo, a ser lançado em abril, ou no mais tardar, em maio. Editado pela Urutau, tem sido uma nova experiência em termos de publicação, um ganho em termos de qualidade profissional. Desde a preparação da capa, passando pelos cuidados com a revisão pelo acabamento do livro, e considerando as dificuldades em publicar com a editora (pelas chamadas regionais serem muito concorridas), tenho uma grande expectativa pelo resultado final. 

Já estamos no fim do processo de revisão, e o próximo passo será a edição em si. O livro conta com 144 p. e desta feita, sem prefácio. Considerava até dois meses atrás como o meu patinho feio, pois ali está reunido um conjunto heterogêneo de gêneros e formatos diferentes, pequenos e médios contos, crônicas ficcionais, relatos de viagem, um fragmento de diário, poesias em prosa, um esboço de roteiro e até mesmo uma curta peça dramatúrgica. Mas com o resultado da chamada, iniciei leituras de revisão e me dei conta de um prazer inesperado que a obra me proporcionou.

O conjunto reúne 56 textos, sendo 28 singelos, afetuosos, recordatórios e 28 tensos, ardilosos, dramáticos, sem prefácio. Optei por reunir textos avulsos, alguns guardados há anos, que deram uma curiosa e ao mesmo tempo harmoniosa consistência de coisas diferentes que consolidam uma obra. Um livro que descreve situações, circunstâncias definidas por um tempo passageiro, apreendidas ao sabor do momento e que se aos poucos se deixam diluir.



22 março 2025

Hackman, Gaza



Gene Hackman faleceu há poucos dias, juntamente com sua esposa. Este é um doloroso caso que pode se transformar em narrativa: dois idosos que moram isolados, praticamente sem contato com amigos e um deles (a esposa) falece e o outro (Hackman) tomado pela doença de Alzheimer, não sabe como reagir, ou como se virar, até que acaba fenecendo. Muito triste esse desfecho, considerando a cadeia de acontecimentos – a morte da esposa por hantavírus, sua incapacidade em reagir e buscar ajuda pelo avançado grau da doença. Um grande ator ganhador de dois Oscars, que marcou suas atuações pela presença cênica. Tinha uma grande admiração por seu trabalho, em especial no impactante Mississipi em Chamas, de 1988. No final, de nada valeu toda a fama e reconhecimento.

Israel volta a atacar fortemente Gaza, depois de dois meses de trégua, e deixa mais de 400 mortos. Como escrevi no posfácio de minha peça Terra Devastada, não haverá paz, porque não há negociação possível, considerando Netanyahu e Trump no poder. Ano que vem teremos eleições, e a pressão sobre a esquerda política só tenderá a aumentar. Até lá, Lula deverá se segurar porque é Lula, mas e depois? Paro por aqui, sigo para Santo Amaro.



03 março 2025

A amplitude de Ainda Estou Aqui


Foto de Greg Girard

Esse o Brasil, uma conjunção de formações díspares que não se alinham e no mais das vezes, se contradizem. Uma sociedade rompida que se constrói pela autofagia, onde os grupos mais fortes se estabelecem em detrimento dos mais débeis. Assim sempre foi e segue sendo, ainda que vez ou outra governos mais populares estabeleçam algum nível de desenvolvimento social. Leio Verdade Tropical, de Caetano Veloso com gosto, com uma defasagem de trinta anos desde sua escritura. Sua narrativa descreve o tempo todo o que se faz e o que se destrói em uma sociedade autoritária. O episódio de sua prisão, junto com Gilberto Gil, é de uma ignomínia absoluta, só mesmo produzida por um sistema ignorante até a medula, e que dispõe de poder.

O processo da detenção dos dois não difere da de Rubens Paiva e de tantos outros brasileiros. Lembro de Rubens Paiva em razão do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Moreira Salles, ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro ontem. Uma festa coletiva, que tomou conta das ruas do Brasil, que demonstra a penetração que o filme teve nas várias parcelas da população. Mais de cinco milhões de pessoas só no Brasil assistiram no cinema Ainda Estou Aqui, propiciando uma compreensão muito clara do que significou a violência militar sob a ditadura, demolindo as falsas convicções de que o período foi de desenvolvimento e bem-estar.

O trabalho didático desse filme foi mais efetivo do que todo o processo de educação formal em 60 anos! Esclareceu, coletivamente, sobre os horrores da ausência de liberdade e de direitos civis. Talvez o ponto chave do sucesso foi uma narrativa que expõe a brutalidade de maneira indireta, sem a necessidade de conduzir o espectador às salas de tortura com a cadeira do dragão e as maquininhas de choques elétricos. E mais ainda: expor a sorrateira invasão domiciliar de uma família de classe média, quebrando sua estrutura com o sequestro e desaparecimento do pai. Tudo manifestamente decidido e conduzido nas entrelinhas do terror, sem rosto e sem finalidade.

Caetano e Gil foram sequestrados por terem participado de um show onde os artistas expunham a faixa famosa de Torquato Neto, Seja marginal, seja herói, sobre a reprodução de um corpo estirado no solo. A significação desse gesto superava a compreensão das mentes obtusas dos militares de plantão, que viam aí uma associação intolerável com propósitos subversivos. É provável que o tropicalismo e sua rebeldia cultural tenha incomodado as casernas, que na falta do que fazer, passaram a deter artistas. Os dois meses de prisão de Caetano produziram um terrível mal-estar depressivo, superado a custo mesmo no exílio em Londres. Espíritos sensíveis, que acusavam a dor e a violência recebida, sem uma pronta reação. Assim foi também com frei Tito, que não apenas foi detido, como duramente torturado, e que acabou se enforcando no exílio francês.

Eunice Paiva não se dobrou, embora tenha mantido um impressionante sangue frio no método que seguiu para denunciar a ditadura. Até onde pôde, lutou por saber do destino do marido, até que quarenta anos mais tarde, a partir dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, consegue finalmente a declaração de que Rubens Paiva tinha sido torturado e morto em dois dias, e seu corpo diligentemente desaparecido. Como ela, muitos não se dobraram ao longo dos anos.