La manos de la protesta, Oswaldo Guayasamin
Acabo de desligar o gravador, Ranulfo
me diz "essa entrevista pode ajudar a você, mas a mim não vai fazer
diferença", assim mesmo, sem rodeios. Durante os pouco mais de dez minutos
manteve uma postura altiva, sem se intimidar. Sua fala é firme, escorreita,
ainda que me desafie enquanto entrevistador, parece gostar da oportunidade de
falar, ou pelo menos de ter uma chance de expor seu argumento crítico, como se
ele o tivesse desenvolvido aos bocados, ao longo dos 64 anos de vida.
A memória dos fatos é incisiva, "cheguei aqui há 47 anos, mas não foi debaixo de uma carroça", e quando pergunto se voltou para Salvador, "cheguei aqui em maio de 1970 e voltei lá em outubro de 1994, uma vez só". Ainda que rigoroso na descrição de sua apreensão do mundo, não
relaciona sua condição de morador de rua com a atávica ausência de políticas
públicas. Acompanha as notícias do mundo pelo rádio, pela TV, não sente falta
de um aparelho para navegar na internet, mas ainda quer ter um celular para
entrar em contato com as pessoas. Eu me pergunto, quais pessoas? Quando o encontrei, estava em papo aberto e reto com outro
"carroceiro", em uma esquina do Paraíso.
Ranulfo é o segundo sem-teto que
entrevisto e como o primeiro, fez questão de mostrar seus documentos, deixando
a impressão de que é constantemente abordado pela polícia. Pergunto se a lei
costuma incomodá-lo, não compreende, preciso explicar melhor o que quero dizer.
E me responde com um exemplo, "ali em frente daquele prédio que tem a mulher (que
se indispõe com ele, foi a primeira coisa que me contou quando me aproximei) a prefeitura me pagou 100 conto para ajudar a mudar de lugar uma placa que estava no lugar errado, à noite a polícia
encostou desconfiada que eu estava roubando e deixei que o pessoal esclarecesse os policiais. No meio da confusão, falei pra eles resolverem enquanto eu ia tomar meu conhaque".
Fumava um cigarro atrás do outro, não
por nervosismo. Eu fazia as vezes da mídia, segundo suas palavras, por isso não
sentia inconveniente em falar, mas por certo alguma ansiedade, o que explica
seu início com respostas enfáticas quase agressivas. Eu entendia que a
calibragem do tom viria com a conversa, e mesmo dizendo-lhe mais de uma vez a
razão da entrevista, Ranulfo não se sentiu satisfeito. Sua solidão perene em
meio à multidão indiferente criara uma crosta de proteção, que servia
igualmente de distanciamento.
Ranulfo se informa pela mídia dominante, TV e rádio, e faz questão de se informar sobre política. É forte sua decepção, mas coloca-se a disposição para falar do tema, “nunca votei no PT, quando vi meu candidato (Maluf) estampado junto com
a Marta ali no outdoor, eu falei ‘mas nunca você ganha o meu voto’ e não votei mais”. Tento explorar essa posição, ele não facilita
e expõe um arrazoado com sua firme dicção, ainda que confuso, "direito adquirido não se mexe", questionando as mudanças projetadas pelo governo golpista, "agora aos 65 eles querem mais 15 anos de contribuição (...) então vou ter de morrer ali debaixo", apontando para a carroça. Comento que lhe darei um livro de Che
Guevara, ele ensaia em espanhol "el comandante Che" e pede que deixe
"naquela portinha, com a pessoa que estiver lá que depois eu pego" e
se afasta, sem se despedir. Nossa entrevista terminou como começou, sem
qualquer formalidade.
Como escreveu belamente João do Rio, "Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?". A rua tem alma e não há porque se admirar em ver os homens nelas dormir como se em casa estivessem, pois conforme João do Rio, "somos reflexos". Já não há mais lugar para o suave estranhamento da admiração, mas de se compreender a miserabilidade que elegemos como invisível. Não há como apreender a alma das ruas sem vivê-las intensamente.